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Mar 11

1) Na pesquisa que o grupo realizou verificámos que existe um momento que o marca para toda a sua vida: refiro-me como calcula à visita que fez ao seu tio – o capitão Francisco Pestana. Em que ano foi isso? Como foi essa experiência? Qual a Influencia que isso causou tanto a nível pessoal, como a nível ideológico?

 

Teve uma influência grande, embora eu já tivesse uma influência de família, visto que o meu avô Pestana Júnior, pai desse meu tio, tinha sido deputado republicano durante a primeira república e após o 28 de Maio de 1926, foi um resistente contra a ditadura e por isso mesmo, foi preso (na chamada revolta da Madeira), foi deportado e havia já uma tradição de luta democrática na família.

Essa visita, posso descreve-la muito sumariamente, eu tinha 9 anos de idade, o meu tio tinha sido um dos intervenientes no assalto ao quartel de Beja, foi preso e estava sobre a tortura do sono nessa cadeia do Aljude em celas conhecidas como curros (que eram de tal maneira pequena que os presos não se conseguiam levantar) e ali aguardavam para ser levados para a PIDE, para aí serem torturados. Quando finalmente teve direito a uma visita, o meu tio, estava sobre tortura do sono à uma semana e a cadeia do Aljube era uma cadeia muito pesada (com um pé direito muito alto, muitas grades, uma fraca luminosidade… dava portanto uma impressão muito opressiva) e depois o meu tio estava num determinado local com grades por traz dele, grades à frente dele, depois nós estávamos por traz de outras grades  e tínhamos um Pide entre nós a ouvir a conversa e um outro atrás  de nós. Eu não reconheci o meu tio, de tal maneira estava desfigurado pela tortura do sono, que tinha a cara desfigurada e só quando o meu tio começou a falara é que eu o reconheci e quando o vi naquele estado (como miúdo de 9 anos que era) comecei a choramingar e a minha mãe (que era uma senhora muito magrinha, baixinha e franzina, mas cheia de fibra) apontou para um pide e disse “Em frente de gente desta não se chora” e de facto este foi um exemplo muito forte, que eu guardei sempre no percurso da vida, por representar a firmeza da defesa de princípios e na luta pela liberdade e democracia, mesmo perante um assino da PIDE, que escutava a conversa.

 

 

 

 

 

2)Actualmente muitos pensadores e pessoas comuns vêm dizendo que a repressão do regime salazarista não era tanta como se diz. Como é óbvio discorda desta posição…e terá vários exemplos e tipos de repressão no seu partido e aos seus camaradas de luta. Quer especificar?

O assassinato de Ribeiro Santos, foi um dos mais marcantes, ocorreu a 12 de Outubro de 1972, naquela que é hoje a minha Universidade (“Económicas” como se chamava, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão). Portanto, o movimento estudantil vivia um período de grande repressão, colocaram-se os “gorilas” nas universidades e haviam dezenas de estudantes presos a serem torturados na PIDE (unicamente por se baterem contra a guerra colonial e pela Liberdade e Democracia)…e convocou-se  uma reunião ou “meeting” (como nós lhe chamava-mos) para discutir precisamente a repressão contra o movimento associativo, num anfiteatro (que hoje já não existe, mas que depois ficou com o nome de Ribeiro Santos) e quando a reunião estava a começar, nós apercebemo-nos que estava lá u m individuo que, dentro do faro anti-pide que nos caracterizava, nos suscitou algumas dúvidas. Enfim, ele foi questionado, disse que era de Agronomia, estavam presentes colegas de Agronomia que lhe fizeram 2 ou 3 perguntas sobre que disciplinas tinha e quais os professores que tinha…e rapidamente se viu que era mentira e se percebeu que ele era um “bufo” e que estava ali para espiar a reunião. Nessa altura, ele foi imobilizado e colocaram-lhe um saco na cabeça (para ele não poder identificar as pessoas que estavam a falar) e nós estávamos a discutir o que havíamos de fazer com aquele individuo e algum tempo depois, não muito, entraram para dentro do anfiteatro, trazidos (pasme-se) quer pelo secretário do instituto, quer por dois elementos da direcção da associação de estudantes (que tinham ar “patinho”, eram “esbirros” da PIDE, que vinham armados – que como depois se viu, tinham as armas prontas a disparar). Quando entraram no anfiteatro, isto suscitou imediatamente uma enorme revolta pela maior parte dos estudantes…Nós atiramo-nos a eles, o Ribeiro Santos, como sempre, estava na primeira linha de combate, um deles foi imediatamente dominado. Quando nós estávamos prestes a dominar o segundo, esses dirigentes associativos, que sobre a justificação de se saber se aquele individuo era ou não PIDE, foram chamar a PIDE para dizer se o sujeito era ou não. Começaram a dizer “Calma, calma!” e criou-se uma fracção de segundos de hesitação que deu tempo ao PIDE de pôr a mão casaco, rapar de uma pistola, apontar ao peito de Ribeiro Santos e disparar duas vezes. Nessa altura, o José Lamego (que era outro estudante de direito) atirou-se a ele e agarrou-lhe a mão…O PIDE continuou a disparar em todas as direcções e por milagre não acertou em ninguém, mas no último tiro o PIDE conseguiu virar a arma para baixo e varou uma das pernas do Lamego que com o impacto da bala enfraqueceu e desfaleceu um pouco e quando o Lamego caiu ele apontou-lhe a arma e apertou-lhe o gatilho e nós ouvimos o cano da arma a bater em seco e ele só não disparou porque não tinha mais balas, se não tinha também assassinado o Lamego.       

Este crime do Fascismo, mas também a enorme jornada de luta que se lhe seguiu, mostrou por um lado o que era o regime e a sua natureza assassina, perseguidora de quem lutava pela liberdade e democracia, com assassinos contratados, como eram os indivíduos da PIDE, mas mostrou também que havia um povo disposto a lutar e de facto quem andou nas ruas nos dias seguintes (ele foi assassinado na 5ª Feira e o funeral foi no sábado), a distribuir comunicados, a mobilizar a população para estar presente no funeral (que foi aliás uma jornada de luta memorável), ficou claramente com a sensação de que tinha começado ali o principio do fim do regime. 

 

 

 

 

3)Agora num âmbito mais jurídico-constitucional…diga-me como caracteriza a constituição da república de 1933? Quais os pontos que destaca (tanto pela negativa, como pela positiva – se possível)? O que perdeu o povo português?

 

A constituição de 1933 é, digamos, o coroar da ideologia do Fascismo e do Corporativismo. Portanto, a construção ideológica do fascismo faz-se com base em 2 ou 3 instrumentos jurídico-políticos fundamentais. Um deles é o Estatuto Nacional do Trabalho (que em parte é uma espécie de tradução da “carta di lavori” de Mussolini), o outro é a constituição de 1933 que é uma constituição de cariz autoritário, com a proclamação do “Tudo contra a nação, nada contra a nação” e curiosamente adoptando uma técnica muito particular. A primeira coisa que se deve dizer é que essa constituição foi aprovada por uma espécie de plebiscito, em que as abstenções contaram como voto a favor e por outro lado a constituição caracterizava-se por ter até formalmente consagrados direitos, só que depois sobre esses direitos dizia “lei especial regulará o exercício deste direito”…portanto nós vamos escrito no texto da constituição as liberdades que não existiam no fascismo que eram a liberdade de organização, a liberdade de manifestação, a liberdade de expressão , porque se dizia que a “lei especial regulará o exercício deste direito” e o que a lei especial fazia era restringir e cortar o exercício dessas mesmas leis e liberdades.

Portanto a constituição de 33 é própria de um regime autoritário, fascista e negador das liberdades e garantias dos cidadãos.

 

 

 

      

 

4) Em termos de direitos laborais qual era a situação em Portugal durante a ditadura? Quais os direitos laborais essenciais que os trabalhadores portugueses não tinham?

 

É curioso porque o regime de antes do 25 de Abril  há um largo período em que sob a égide daqueles grandes princípios do corporativismo , como o do “trabalho e capital têm interesses comuns” e portanto com têm interesses comuns não se concebem formas de luta e a greve é proibida e mais que proibida a greve é considerada e é incluída no código penal como “um crime punível como prisão maior”, mas é uma concepção do mundo do trabalho assente em 3 vertentes essenciais: por um lado existia a concepção paternalista e autoritária das relações sociais do trabalho, era também a ideia própria do corporativismo de que a sociedade é um conjunto de corpos sociais e cada um deles tem um chefe - ao nível da sociedade geral o chefe era Salazar (e por isso mesmo na fivela do cinto da Mocidade Portuguesa estava lá o “S” e quando os meninos se esqueciam o comandante castelo perguntava “Portugal, quem manda?” e os meninos gritavam “Salazar, Salazar, Salazar”), na igreja era o padre, na família era o marido e pai e na empresa (obviamente) era o patrão- uma visão de que os direitos estavam todos de uma lado e os deveres todos do outro, uma visão profundamente machista das relações laborais (portanto o trabalho era o mundo dos homens e as únicas excepções eram aquelas profissões que estavam feminizadas por preconceito social, como era o caso das enfermeiras ou das telefonistas, mas fora destes casos só em fenómenos como as guerras ou a imigração é que permitiam a entrada das mulheres no mercado do trabalho, porque claramente a concepção do regime fascista era de que “A mulher devia estar em casa a fazer sopas e a coser meias” e por isso mesmo (facto que muitas pessoas já se esqueceram) a mulher casada necessitava de consentimento do marido para celebrar um contrato de trabalho e em muitas profissões as mulheres (por exemplo as enfermeira eas telefonistas) necessitava do consentimento da entidade empregadora para casar e finalmente era também uma concepção taylorista típica (a aposta num modelo de que, ainda hoje, o país não se livrou e que é em larga medida o responsável pelo atraso do nosso país) que assenta na lógica da utilização intensiva de trabalho pouco qualificado e “baratinho”, com nenhuns direitos, que foi um modelo que fez o sucesso dos nossos sectores tradicionais (como os têxteis e o calçado), mas que na época da globalização implodiu por completo.

Portanto, este era o edifício jurídico-ideológico do mundo do trabalho e que obviamente não tem nada a ver com a realidade em que vivemos hoje.  

 

 

 

 

5) Em relação à guerra colonial diga-me as razões evocadas pela ditadura para a guerra? O porque do MRPP ser contra a guerra? Quais as acções realizadas pela resistência e pelo MRPP em particular?

 

O regime português era um regime que sobrevivia à custa da exploração das colónias e portanto era com o apoio do imperialismo e em particular do imperialismo americano que as colónias eram um instrumento fundamental para que os grandes interesses financeiros explorassem essas riquezas e deixassem umas migalhas à classe dominante aqui em Portugal. Mas era simultaneamente a causa das maiores contradições, quer dizer por um lado era a razão de subsistência do sistema, mas ao mesmo tempo trazia em si os instrumentos de revolta e de combate, que punham em causa (como puseram) a própria subsistência do regime. Enfim, tudo isto era coberto com o discurso do “Portugal indivisível” a par com um racismo muitas vezes mesclado com um certo paternalismo…Porque o colonialismo português nunca se assumiu com uma base claramente de superioridade da raça (embora houvesse quem a defendesse), mas com uma concepção paternalista civilizacional e missionária relativamente aos povos das colónias e evidentemente que o povo português só se conseguiria emancipar a partir do momento em que Portugal deixasse de ser uma potência colonial e portanto a posição de principio que o MRPP sempre defendeu era expressa na palavra de ordem “Guerra do povo à guerra colonial!” e em particular no movimento estudantil (que foi quando eu comecei a ter conhecimento directo com os combates aí travados) nós defendíamos a ligação da luta dos estudantes à luta mais geral do povo português, em vez de ter uma visão corporativa (como tinham algumas correntes de pensamento dentro do movimento estudantil) de ligar apenas aos interesses imediatos e concretos dos estudantes. Nós tínhamos ideia de que a luta dos estudantes, para ser consequente, tinha de ser integrada na luta mais geral do povo português e desde logo contra a guerra colonial e portanto as acções que fizemos foram desde a organização de manifestações, algumas delas (e estou a lembrar-me de uma a 21 de Fevereiro, que ocorreu ali na praça do Chile, onde os manifestantes reagiram á reacção dos Pides e os Legionários…o que o regime fazia era encher o local programado para a manifestação de bufos, de pides e de legionários à paisana e cercavam o local de carrinhas da polícia de choque com ambulâncias para dar claramente a entender a ideia de que “vai haver sangue” e nessa manifestação pela primeira vez essa brigada de Pides que caiu em cima da manifestação foi rechaçada, designadamente com recurso a barras de ferro e outros instrumentos democráticos como esses e foi aí que a repressão se viu pela primeira vez afrontada e com uma disposição de luta e uma organização da manifestação. Houve também as chamadas pixagens (com os sprays pintar a parede com inscrições) , a tal ponto que a certa altura que todos os carros da policia andavam com um balde de tinta castanha e uma trincha e os policias eram simultaneamente pintores e sempre que viam uma pintura iam apagar, nem que fosse as simples palavras “Guerra do povo à guerra colonial!” ou outra palavra de ordem deste género. Isto era uma coisa que assustava tremendamente o regime, também havia a distribuição de comunicados e uma acção constante junto das forças armadas, sendo que o MRPP dirigia o movimento RPAC (Resistência Popular Anticolonial) que era digamos a organização do movimento de luta contra a guerra colonial no interior das próprias Forças Armadas, apelando à deserção com armas e à transformação da guerra colonial numa guerra revolucionária pela libertação do povo português e dos povos das colónias.                     

 

 

 

publicado por mitouverdade às 22:46

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